Polifonia significa simplesmente multiplicidade de vozes livres. Na narrativa polifônica essas vozes inscrevem pontos de vista distintos, tal que uma voz, a de uma personagem feminina, por exemplo, jamais aceita se submeter à voz de um personagem machista. É por isso que a narrativa polifônica se define mais pelo dissenso que pelo consenso, porque nela o dissenso não apenas é bem visto, cultivado, necessário, como é o princípio polifônico através do qual uma voz não aceita diminuir-se, apagar-se ou inferiorizar-se diante de qualquer outra. O dissenso polifônico, assim, não aceita hierarquias e busca a palavra comum, que nada mais é que a constituição de um mundo em que todos sejam plenamente iguais, livres, autônomos.
Diferentemente da narrativa polifônica, por sua vez, a monológica é aquela em que uma verdade pré-existente ou hierarquias econômicas, simbólicas, étnicas, linguísticas, de gênero abolem ou combatem todo e qualquer tipo de dissenso, taxando-o de antemão como ignorância, ingratidão, incompreensão, ressentimento, mal-humorado, estúpido, terrorista, errado, falso, injusto, criminoso.
O cenário do monologismo
Uma sociedade realmente democrática só é possível se for polifônica, logo se cultiva e valoriza o dissenso, pois entende-se que apenas através do dissenso livre e democrático é possível reparar injustiças e produzir a abertura sem fim da liberdade de expressão e de ação de suas diferentes vozes culturais, econômicas, étnicas, de gênero, num contexto em que o sujeito é tanto mais livre quanto mais produz seus próprios dissensos, inclusive em relação a si mesmo, ao mesmo tempo em que reconhece, respeita e incentiva o dissenso alheio, pois sabe que dissenso – e não o consenso – é o caminho da verdadeira justiça e liberdade, além de ser, por consequência, o cenário ideal para a invenção sem fim de uma sociedade segura de si e, portanto, coletivamente feliz, na qual todos terão oportunidades e serão permanentemente incentivados a realizar todas as suas potencialidades criativas, corporais, intelectuais, tal que a felicidade de um só será possível no horizonte da felicidade de todos os outros diferentes de si.
É, por isso, "chover no molhado" a constatação de que não vivemos numa sociedade democrática, nem no Brasil e muito menos nos Estados Unidos ou nos países europeus, porque em todas essas sociedades o dissenso é caçado, humilhado, vilipendiado, criminalizado ou, na melhor das hipóteses – que não deixa de ser a pior – é confinado ou experimentado em guetos de algum departamento universitário ou de algum reduzido grupo ou tribo de artistas ou militantes políticos.
Não é possível, portanto, democracia para valer no interior de uma sociedade capitalista na qual e através da qual é o poder econômico que monologicamente, como verdade constituída, impõe todos os parâmetros de convívio, inviabilizando e desqualificando, quando não persegue ou elimina, todo dissenso que propõe ou expressa outros modelos de sociedade. Não existe possibilidade de democracia numa civilização em que a única liberdade possível é a homogênea e monológica – porque objetiva sempre o lucro – circulação global de reificadas mercadorias, tanto mais monológicas quanto mais estão implicadas com a farsa de que é livre e feliz quem as possui, pois pode, possuindo-as, exibir-se e humilhar aqueles outros que não as possui.
Eis aí o extremo e fascista cenário do monologismo: a nossa civilização, tanto mais monológica e fascista, quanto mais hipocritamente impõe e acredita religiosamente na

sua própria farsa: a liberdade unidimensional da circulação global de endeusadas mercadorias como o despótico e consensual modelo que divide o mundo em duas metades, a daqueles que possuem as reificadas mercadorias, os monológicos felizes; e a daqueles que não as possuem, os monológicos infelizes
Eta vida besta, diria o poeta!
Só tem voz quem tem dinheiro
Numa civilização em que é o dinheiro que manda e é apenas o obtendo e concentrando- o que o sujeito se torna "livre" para comprar, e não para produzir dissensos, mas suprimi-los, não é possível democracia. É por isso que a polifonia é impossível na televisão, seja aberta, seja paga, pela simples razão de que, no atual modelo, o controle do espectro radioelétricos é oligopolizado e seus donos, por consequência, tem o poder de demitir e previamente censurar toda e qualquer voz marcada pela potência do dissenso.
Sem a potência do dissenso, portanto, não existe liberdade de expressão, assim como não existe a possibilidade de produção e de exibição de novelas e filmes polifônicos, razão pela qual, sem medo de errar, os filmes e novelas produzidos e transmitidos por nossas tevês nunca serão plenamente polifônicos. Eis porque, tendo em vista os argumentos explicitados, é possível objetivar a seguinte premissa: a televisão oligopolizada mundialmente só produz narrativas e notícias monológicas ou, para enganar tolos, falsamente polifônicas.
Consideremos, a respeito, o personagem André, representado pelo ator Lázaro Ramos, na atual novela das 9, Insensato Coração, da TV Globo, novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Aparentemente, André seria um típico personagem polifônico porque inscreve ou inscreveria seu ponto de vista negro, autônomo e livre, sem se submeter a nenhum outro personagem da trama – a branco algum, bem entendido. Tendo em vista a suposta ousadia e autonomia de André, como personagem negro, seria possível analisá- lo, via Bakhtin, como um personagem polifônico e, por extensão, seria possível igualmente argumentar que a novela Insensato Coração constitui ou constituiria um exemplo típico de polifonia na narrativa ficcional brasileira.
Ledo engano. André não é um personagem negro polifônico da teledramaturgia brasileira porque seu potencial ponto de vista de dissenso étnico, em relação ao padrão branco, está tomado – para não dizer rendido ou calado – por duas premissas ou preconceitos ou clichês tipicamente monológicos, as quais simultaneamente determinam monologicamente o perfil do personagem: a premissa ou estereótipo de que a diferença negra por excelência é sexual e a premissa ou estereótipo de que só tem voz, logo o direito de autonomia expressiva, quem for bem-sucedido economicamente.
Só tem voz quem tem dinheiro.
A politicamente correta presença negra na teledramaturgia brasileira
André, portanto, é um personagem duplamente monológico porque seu perfil "autônomo" é sustentado ou garantido por dois suportes hierárquicos: 1) o suporte hierárquico fálico da virilidade sexual dos homens negros – na verdade um suporte produzido para ser sexualmente hierárquico, motivo pelo qual é, na verdade, uma forma de reduzir a potência expressiva negra, fixando-a e animalizando-a no campo do baixo- ventre sexual – diminuindo-a e submetendo-a, portanto; 2) o suporte ou verdade hierárquica de que o dinheiro, a sua posse, é a condição prévia de toda e qualquer liberdade, sem a qual não é possível a produção de dissenso, embora sabemos que o dinheiro jamais produz verdadeiros dissensos, posto que a sua verdade é a do despótico e monológico consenso da aceitação subserviente – logo não livre e nem autônoma da concentração hierárquica da riqueza comum.
Uma voz polifônica, para ser polifônica, conecta-se com outras vozes de dissenso, tal que uma voz de dissenso negro se inscreve, complementa e aumenta solidariamente a voz de dissenso feminino, que, em conjunto ou coral polifônico, incorpora e se inscreve cooperativamente na voz de dissenso da pobreza, a qual, por sua vez, intensifica a voz de dissenso homoerótico e assim sucessivamente.
Uma narrativa polifônica é, assim, um coral de vozes em contraponto de dissensos livres, autônomos, solidários e implicados cooperativamente com a constituição da palavra comum, que é a palavra da justiça aos povos, que é a palavra livre entre livres, porque entre iguais, em ato e potência. É evidente que a voz do personagem André, em Insensato Coração, não é aquela que produz ou intensifica o dissenso cooperativo a
inscrever-se, ainda que sob o signo do conflito, na palavra comum. Pelo contrário, é a monológica voz do privilégio de classe e do clichê da virilidade sexual do homem negro. É, portanto, voz de e para a exclusividade.
Como uma mercadoria, é a voz publicitária, de valores agregados, fálicos e econômicos. Dai sua circulação televisiva necessariamente monológica, porque existe para sedimentar consensos antidemocráticos e hipócritas, como o consenso de que a inclusão negra só pode ocorrer se aceita abandonar sua potência de dissenso e, por consequência, se estiver a serviço, duplamente, do privilégio de classe e de sua autopromoção publicitária, a de que os ricos são politicamente corretos, sem preconceitos – e por isso são merecidamente ricos, porque são "gente boa".
Monologicamente, a inclusão negra na teledramaturgia do patronato, só ocorre se estiver a serviço da exclusão, inclusive da maioria negra.
Só ocorre, enfim, se embranquecer, como peles negras politicamente adaptadas às brancas máscaras econômicas, simbólicas e publicitárias da civilização burguesa. Ainda com Frantz Fanon, especialmente com o seu monumental Os condenados da Terra, sem romper com o sistema de bens a serviço da colonização burguesa e ocidental do mundo não é possível uma teledramaturgia realmente polifônica, na TV privada brasileira e de resto em qualquer TV privada do mundo, quando tomada monologicamente pelos interesses corporativos da indústria cultural, fábrica mundial de produção de dóceis subjetividades estilizadas pelos brancos e patriarcais domínios coloniais.
E, para romper com o sistemas de bens, é preciso romper com a própria civilização burguesa, se não quisermos ficar presos a uma prática de inclusão de poucos, fundamentada na exclusão das maiorias.
INSENSATO CORAÇÃO A negritude ou racismo politicamente correto
Escrito por Luis Eustaquio SoaresLuis Eustáquio Soares, Ufes.
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PALAVRAS-CHAVE: Polifônica. Monologismo. Democracia.
Bakhtin, emProblemas da Poética de Dostoiévski, argumenta que este último, Dostoiévski, foi o criador do romance polifônico, donde é possível inferir que, com a narrativa de ficção de
Dostoiévski, torna-se potencialmente possível a produção de contos, romances, crônicas, novelas, filmes igualmente polifônicos. Para Bakhtin, uma narrativa é polifônica quando todos seus elementos intrínsecos, autor, narrador, personagens, são plenamente livres, autônomos. É, portanto, polifônica a ficção em que seus personagens não se submetem ao autor ou mesmo a outro personagem: cada um é único, singular e responsável pelos seus atos, como se todos fossem seus próprios autores, num contexto em que a palavra é comum porque todos a tomam para si, enfrentando hierarquias e desigualdades de classe, de gênero, étnica, simbólica ou qualquer outra.